TRABALHO & ÓCIO

Valter da Rosa Borges

Vivemos numa época em que as pessoas são tão trabalhadoras que ficam estúpidas.
Oscar Wilde
O trabalho é a farra dos velhos.
Mario Quintana
À luz da mitologia, os deuses não trabalham e agem quando querem. Este é o seu ócio. Os homens trabalham, porque pensam que o ócio é uma heresia contra os deuses. E, como consolo, fizeram do trabalho uma virtude e não sabem o que fazer nas situações de ócio.
Não podemos nos libertar do tempo, mas libertar o tempo do trabalho compulsivo e compulsório. O tempo livre para o prazer de viver é a suprema libertação do homem do tempo ocupado pelo trabalho apenas monetário.
O tempo nos escraviza, porque se valorizou como trabalho. E onde não há trabalho, o tempo é vazio e nos faz também vazios. O trabalho é nosso vício. Nada somos sem trabalho. No entanto, o eterno é o oco, onde as coisas acontecem, e quem trabalha não pode contemplar o espetáculo do desfile das mudanças. Só nos vemos trabalhando, matando o tempo que mata o nosso ser matador.
Não se sente escravo quem se acostumou à escravidão. Perdeu a capacidade de ser livre, principalmente se a escravidão lhe dá a sensação de segurança e lhe atende às necessidades mínimas. Também é escravo quem, apesar de não o ser, é obrigado a um trabalho que, embora rendoso, não lhe dá satisfação.
O trabalho ideal é aquele que não é obrigação, mas desenvolvimento das potencialidades do ser. O trabalho que não é expressão do ser é trabalho escravo. Por isso, dizia Vivekananda:
“Noventa e nove por cento dos homens trabalham como escravos e o resultado é a miséria; todos trabalham egoisticamente. Trabalhai por liberdade. Trabalhai por amor.”
Paul Lafargue foi contundente:
“Uma estranha loucura tomou conta das classes operárias nas nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura trouxe consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor pelo trabalho, a paixão agonizante pelo trabalho, levada até o esgotamento da energia vital do indivíduos e de seus filhos. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas e os moralistas preferiram sacrossantificar o trabalho.”
Bertrand Russell vai ainda mais fundo:
“A moral do trabalho é uma moral de escravos, e o mundo não precisa de escravos.”
Segundo o Gênesis, Deus impôs ao homem o trabalho como punição para o pecado original. O ócio, por conseguinte, era o estado natural do homem no Paraíso. Mas, o Calvinismo, santificando o trabalho, viu na riqueza dele resultante, uma evidência de salvação do homem pecador.
Stanley Parker comentou:
“Em sociedades mais simples não é fácil traçar uma linha divisória entre o trabalho e o lazer. Os povos primitivos tendem a dar a muitas de suas atividades cotidianas um caráter lúdico. Orientam a vida de forma a entremear longos períodos de trabalho a períodos ocasionais de intenso consumo de energia. Nessas sociedades não existem períodos de lazer claramente definidos como tais; mas certas atividades econômicas, como a caça ou a ida ao mercado, têm obviamente seus aspectos recreativos, assim como o canto ou a narração de estórias durante o trabalho. Desconhecem a idéia de um tempo destinado especialmente ao divertimento e à recreação, embora façam coisas que têm este sentido.
Os antropólogos que têm estudado a vida cotidiana de povos em sociedades mais simples registram um padrão de trabalho e lazer muito mais integrado do que o nosso, na sociedade industrial moderna.”
Trabalhar cantando não apenas uma demonstração de prazer pelo trabalho que se está realizando, mas também uma compensação para suportar melhor uma atividade apenas de gratificação econômica.
O ócio é a libertação do fazer compulsório. O ócio não é não fazer nada: é o que se faz por satisfação e não por obrigação. Não é deixar o tempo passar, mas usufruir o tempo como se fosse eterno.
O verdadeiro tempo livre é aquele que gastamos conosco, gozando de nossa companhia. É a oportunidade de nos vermos atentamente, em nada comparável ao ato apressado de nos olharmos no espelho antes de irmos ao trabalho. É o tempo em que somos, ao mesmo tempo, sujeito e objeto e o nosso próprio espetáculo.
Quando não há mais distinção entre o trabalho e o ócio, como se fosse a dualidade do bem e do mal, então tudo o que fazemos é relevante para nós. E também para os outros, quando se associam ao nosso fazer como o seu próprio fazer.
Se damos valor às pequeninas coisas, tudo o que fazemos é importante.
Marshall Mcluhan argumentou:
“Onde o homem global está envolvido, não há trabalho. O trabalho começa com a divisão do trabalho e com a especialização das funções e tarefas nas comunidades sedentárias agrícolas.”
E acrescentou ainda:
“Enquanto na era mecânica da fragmentação, lazer significava ausência de trabalho, ou simples ociosidade, o contrário passa a ser verdade na era elétrica. Como a era da informação exige o emprego simultâneo de todas as nossas faculdades, descobrimos que os momentos de maior lazer são aqueles em que nos envolvemos mais intensamente – tal como sempre acontece com os artistas.”
Se estamos na época do especialista, ou seja, “aquele que sabe cada vez mais sobre cada vez menos”, é preciso reverter essa tendência e inaugurar a era do homem integral, ou seja, “aquele que sabe cada vez mais sobre cada vez mais”, o homem de múltiplas aptidões e interesses e que faz de um deles a sua especialidade para fins de sua sobrevivência econômica.
Alvin Toffler observou que “o número dos trabalhadores que lidam com símbolos é maior do que os que lidam com coisas.” A riqueza se desloca do concreto para o abstrato. Ter coisas já não é tão importante e, sim, fazer coisas, não apenas físicas, mas principalmente simbólicas. A aptidão começa a se transformar em capital e o conhecimento acumulado, em poupança. O verdadeiro ter é ser apto, pois os teres físicos são expressões passageiras da riqueza abstrata.
Toffler advertiu, ainda, que “a civilização que fez da fábrica uma catedral está morrendo”
Para Domenico de Masi, “o único tipo de emprego remunerado que permanecerá disponível com o passar do tempo será de tipo intelectual criativo”, pois “o trabalho manual não aumenta e sim diminui, enquanto o intelectual aumenta”. E isso se constata nas empresas, onde o trabalho manual é delegado, cada vez mais, às máquinas. Informou ainda que “uma estudiosa francesa calculou que cinqüenta por cento da produção européia é imaterial”.
E definiu sumariamente o seu conceito de ócio:
“Ociar não significa não pensar. Significa não pensar regras obrigatórias, não ser assediado pelo cronômetro, não obedecer aos percursos da racionalidade e todas aquelas coisas que Ford e Taylor tinham inventado para bitolar o trabalho executivo e torná-lo eficiente.”
Por conseguinte, ócio é atividade criativa e trabalho, atividade repetitiva.
Erich Fromm, de maneira contundente, advertiu:
“O homem não só vende mercadorias: vende a si mesmo e considera-se uma mercadoria.”
E argumentou:
“Encaramos nossas qualidades pessoais e o produto de nossos esforços como mercadorias que podem ser vendidas em troca de dinheiro, prestígio e poder. Destarte, a tônica é deslocada da satisfação atual da atividade criadora para o valor do produto acabado. Por isso, o homem perde a única satisfação que lhe pode proporcionar felicidade verdadeira – a experiência da atividade do momento atual – e vagueia à caça de um fantasma que o deixa desapontado tão logo crê tê-lo alcançado – a felicidade falaz denominada sucesso.”
Pietro Ubaldi tinha uma concepção funcional do trabalho:
“O trabalho não é uma necessidade econômica, mas uma necessidade moral. O conceito de trabalho econômico deve ser substituído pelo de trabalho função social; direi mais: função biológica construtora, pois ele tem a função de criar novos órgãos exteriores (a máquina), expressão do psiquismo, a de fixar, com a repetição constante, os automatismos (sempre escola construtora de aptidões), a de coordenar o indivíduo no funcionamento orgânico da sociedade. Ao conceito limitadíssimo, egoísta e socialmente danoso, de trabalho-ganho, é necessário opor o conceito de trabalho-dever e de trabalho-­missão. É esse o caminho para o altruísmo; não um altruísmo sentimental e desordenado, mas prático e ponderado, cujas vantagens sejam calculadas. O altruísmo, dado o tipo humano dominante, não pode nascer senão como utilidade coletiva, utilidade que o coloca, inexoravelmente, pela lei do mínimo esforço, sobre a linha da evolução. Limitar o trabalho, ainda que material, à exclusiva finalidade egoística do ganho é diminuir-se a si mesmo; é abdicar da consciência do próprio valor individual, do qual esse trabalho é prova e confirmação; é uma auto-mutilação, uma renúncia à função de célula social, à de construtor que, conquanto pequeno, tem o seu lugar no funcionamento orgânico do universo.”
Quanto vale o trabalho que fazemos para nós? Quanto vale o trabalho que fazemos por amor?
O valor das coisas não passa de convenção.
Em qualquer situação, o trabalho é sempre escravo, se realizado compulsoriamente em razão da força bruta ou da necessidade de sobrevivência.

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